INTRODUÇÃO
A fibrilação atrial (FA) é uma das arritmias mais prevalentes, tendo se tornado um problema de saúde pública. Acredita-se que no ano de 2050 nos Estados Unidos a prevalência da arritmia chegue a 15,9 milhões de americanos. Essa prevalência vem aumentado progressivamente, provavelmente devido ao envelhecimento da população. O avanço da medicina no tratamento das cardiopatias também tem contribuído para a esse aumento.
A associação da fibrilação atrial com fenômenos embólicos é conhecida desde décadas passadas e alguns fatores de risco foram demonstrados em diversos estudos. Até que em 2001 foi descrito o primeiro escore de risco para fenômenos tromboembólicos em pacientes portadores de FA: CHADS2 (C-Insuficiência Cardíaca; H-Hipertensão; A- Idade>75 anos; D- Diabetes; S- Acidente vascular cerebral). A presença de algum item dessa classificação equivale a 01 ponto, com exceção do AVC que são 02 pontos. Se o paciente apresentasse pontuação maior ou igual a 02, tinha indicação de associar um anticoagulante oral no seu tratamento para a prevenção de fenômenos tromboembólicos. Surgia também praticamente no mesmo período os Novos anticoagulantes orais (NOACs), tendo como o “primogênito” o Dabigatrana (RE-LY). Na sequência foram lançados o rivaroxabana (ROCKET AF), apixabana (ARISTOTELE) e edoxabana (ENGAGE-AF). Antes dos surgimentos dos NOACs a opção em anticoagulação oral era a Warfarina. Em 2011 ocorreu um novo estudo com mudanças em relação ao CHADS2, sendo incorporado alguns fatores, surgindo o CHA2DS2VASc (C-Insuficiência cardíaca, 01 ponto; H-Hipertensão arterial, 01 ponto; A2-Idade maior ou igual a 75 anos, 02 pontos; D-Diabetes, 01 pontos; S- AVC e AIT prévios, 02 pontos; Doença Vascular-01 ponto; A-idade entre 65 a 74 anos, 01 ponto; S- sexo feminino, 01 ponto). Se o paciente atingisse a pontuação maior ou igual a 02 pontos, continuava a indicação do uso do anticoagulante oral. Essas medidas associadas aos NOACs fizeram com que diminuísse a incidência de acidente vascular encefálico nessa população de pacientes com fibrilação atrial, com uso de uma medicação com mais segurança do que a Warfarina.
Com o envelhecimento da população, a doença coronariana tem aumentado sua incidência e a concomitância dessa patologia em pacientes portadores de fibrilação atrial vem sendo cada vez mais comum. O infarto do miocárdio é uma patologia grave e necessita de terapia específica para diminuir a morbimortalidade. Um dos fatores mais importantes no tratamento do IAM é a anti-agregação plaquetária. A terapia antitrombótica recomendada é realizada por ácido acetilsalicílico associado a antagonista dos receptores P2Y12 (clopidogrel, prasugrel, ticagrelor). O estudo ISIS-2 demonstrou redução de cerca de 23% na mortalidade com o uso do AAS no infarto do miocárdio. Estudos como o COMMIT/CCS-2, CLARITY-TIMI 28, TRITON-TIMI 38 e PLATO estabeleceram a importância dos tienopiridínicos associados a aspirina no tratamento do infarto.
Em 2012 o estudo DANISH que envolveu pacientes com fibrilação atrial e infarto do miocárdio apresentou que o uso da terapia tripla aumentava significativamente o risco de sangramento quando comparado com o uso de apenas um antiplaquetário (HR=1,47, IC 95%1,04 a 2,08) ,sem diferença nos eventos isquêmicos (HR=1,15, IC 95% 0,95 a 1,40).
Diante de todo esse cenário então surgia um grande questionamento: Como realizar a anti-agregação plaquetária em pacientes que apresentaram um quadro de síndrome coronariana aguda e é portador de fibrilação atrial com critérios para anticoagulação? Devemos utilizar terapia tripla ou dupla e por quanto tempo? Será que a combinação AAS + tienopiridinicos seria suficiente para evitar eventos embólicos na FA? Será que se usarmos a terapia tripla (AAS + tienopiridinico + NOAC) conseguiria evitar novos eventos isquêmicos no infarto, evitando também eventos embólicos na FA sem aumentar sangramento? Quais são as evidências científicas?
EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS
Em 2013 era publicado o estudo WOEST (What is the Optimal antiplatElet and anticoagulante therapy in patients with oral anticoagulation and coronary StentTing). Foi um estudo multicêntrico, realizado em 15 centros da Bélgica e Holanda, que avaliou de forma prospectiva 573 pacientes entre novembro de 2008 a novembro de 2011. Eram pacientes que estavam recebendo anticoagulação oral e submetidos a intervenção coronária percutânea. Foram randomizados em dois grupos: 1- Anticoagulante + clopidogrel; 2- Anticoagulante + clopidogrel + aspirina. Quando o stent era convencional, o clopidogrel permaneceu por um mês e quando farmacológico, o uso foi por um ano. O endpoint primário foi sangramento por qualquer causa e o endpoint secundário era o desfecho composto por morte por qualquer causa, IAM, AVC, trombose de stent e revascularização do vaso culpado. Foi encontrado que após 01 ano de seguimento, apresentou redução na incidência de sangramento por todas as causas no primeiro grupo (terapia dupla), comparado com os pacientes que estavam fazendo uso da terapia tripla (44% vs 19,5%; HR:0,36; p<0,001). Nos desfechos de segurança (endpoint secundário), o único que apresentou redução foi a mortalidade global no grupo da terapia dupla (2,6 vs 6,4%; p=0,027).
O estudo WOEST conseguiu demonstrar que a terapia dupla é segura em relação a trombose de stent e infarto do miocárdio e diminui a incidência de sangramentos. Uma das críticas ao estudo foi o tamanho da amostra, considerado pequeno com poder estatístico para algumas conclusões.
Em 2016 foi publicado no periódico New England Journal of Medicine o estudo PIONEER AF PCI. O contexto era também avaliação de pacientes portadores de fibrilação atrial com necessidade do uso de anticoagulação oral e que foram submetidos a intervenção coronária percutânea. Cerca de 2124 pacientes foram selecionados, com média de idade de 70 anos. Foram comparadas duas propostas com uso de um novo anticoagulante oral (grupo 01 e grupo 02) com a estratégia convencional. Foram elas: ESTRATÉGIA CONVENCIONAL: – anticoagulação convencional com um antagonista da vitamina K junto com a terapia antiplaquetária dupla contendo um inibidor de P2Y12 e aspirina (warfarina+Clopidogrel+AAS); Grupo 01- Rivaroxaban associado a um inibidor de P2Y12 (Rivaroxaban 15mg + Clopidogrel /Ticagrelor/Prasugrel) por 12 meses; Grupo 02- Rivaroxaban com doses muito baixas associado a terapia antiplaquetária dupla (Rivaroxaban 2,5mg de 12/12 horas + Clopidogrel/Ticagrelor/Prasugrel + AAS) por 01, 06 ou 12 meses. Sangramento de relevância clínica era o desfecho primário de segurança. O desfecho secundário era composto por morte de etiologia cardiovascular, acidente vascular encefálico (isquêmico ou hemorrágico) e infarto agudo do miocárdio.
Com relação aos resultados, em termos do desfecho primário, a incidência de sangramento foi 26,7% no grupo de referência (warfarina), 16,8 % no grupo 01 (HR 0,59; IC95% 0,47-0,76; P<0,000013; NNT 11) e 18% no grupo 02 (HR 0,63; IC95% 0,50-0,80; P<00018;NNT =12). Já o desfecho secundário não apresentou significância estatística. Em conclusão, o estudo demonstrou que as duas estratégias testadas com o Rivaroxaban reduziram as taxas de sangramento sem apresentar redução na eficácia da estratégia adotada.
Em 2017 foi publicado o RE-DUAL PCI no New England Journal of Medicine. Foi realizado em mais de 414 centros com um total de 2725 pacientes portadores de fibrilação atrial não valvar com indicação da anticoagulação oral e que tiveram necessidade de intervenção coronária percutânea. Foram realizadas 03 estratégias de tratamento: Grupo 01- Warfarina + aspirina + clopidogrel ou ticagrelor; Grupo 02- Dabigatrana 150mg 2x + clopidogrel ou ticagrelor; Grupo 03-Dabigatrana 110mg 2x dia + clopidogrel ou ticagrelor. O endpoint primário foi sangramento maior ou clinicamente significativo (desfecho de segurança). O Endpoint secundário composto por morte e revascularização miocárdica.
Nos resultados foi encontrado que a dupla terapia com Dabigatrana 110mg apresentou menos sangramento do que a terapia tripla (15,4% x 26,9%), com não inferioridade para eventos embólicos (p<0,001). A dupla terapia com dabigatrana 150mg apresentou também menor sangramento em relação a terapia tripla (20,2% x 25,7%) e considerada não inferior para eventos embólicos (p<0.001). Com relação ao desfecho secundário (morte e revascularização) a taxa de eventos foi semelhante entre os grupos de terapia dupla comparado com terapia tripla (13,7% x 14,4%). O uso da terapia dupla testado nesse estudo foi considerado não inferior a terapia tripla na prevenção de eventos embólicos, com menor índice de sangramentos.
Em abril de 2019 foi publicado no New England Journal of medicine o trial AUGUSTUS. O estudo teve 4614 participantes que apresentavam fibrilação atrial que sofreram síndrome coronariana aguda ou se submeteram a intervenção coronariana percutânea. Foi testado as seguintes hipóteses: 1) Nos pacientes que fazem uso do inibidor P2Y12, seria mais benéfico o uso associado da warfarina ou apixapana (5mg 2xdia)? 2) Nesse grupo de pacientes da primeira hipótese, seria melhor associar AAS ou Placebo? . O Desfecho primário foi sangramento relevante e o desfecho secundário foi morte mais eventos isquêmicos (IAM, AVC, necessidade de revascularização de urgência). Foram divididos em 04 grupos, sendo que todos tinham em comum o uso do P2Y12: 1) Apixabana + aspirina; 2) Apixabana + placebo; 3) Warfarina + aspirina; 4) Warfarina + placebo. Esses pacientes foram seguidos por 06 meses. Com relação aos resultados, foi encontrado que os pacientes que utilizaram Apixaban apresentaram menos sangramento do que os que utilizaram warfarin (10,5% X 14,7%; HR 0,69 IC 95%. 0,58-0,81, P<0,001 de não inferioridade e P<0,001 de superioridade). Na segunda hipótese (o uso ou não da aspirina) foi encontrado maior taxa de sangramentos no grupo que fez uso da aspirina (40,5% X 21%; IC 95% 1,59-2,24; p<0,01). Com relação aos desfechos secundários não apresentou diferença estatística entre os grupos. Como conclusão, o estudo relata que em pacientes com fibrilação atrial e recente síndrome coronariana aguda ou tratado com angioplastia com stent, o regime que inclui o inibidor P2Y12 associado a apixaban sem uso de aspirina, reduziu sangramento sem diferenças significativas em relação a eventos isquêmicos em relação ao esquema que utilizava antagonista da vitamina K, aspirina ou os dois. Augustus trial foi mais um estudo que apresentava resultados semelhantes aos demais já publicados que testaram essa hipótese.
META-ANÁLISES
Em abril de 2018 foi publicada no European Heart Journal uma Meta- análise intitulada como Safety and efficacy of dual vs. Triple antithrombotic therapy in patients with atrial fibrillation following percutaneous coronary intervention: a systematic review and meta-analysis of randomized clinical trials. Essa meta análise concluiu que a não utilização da aspirina reduzia a incidência de sangramentos maior em comparação com grupos com antagonistas da vitamina K ou NOAC associados a dupla anti-agregação. Porém o tamanho da amostra de cerca de 5 mil pacientes não permitiu a avaliação de diferenças em complicações menos frequentes (porém importantes) como trombose de stent.
A publicação do AUGUSTUS em abril de 2019 com quase 5 mil pacientes permitiu a realização de uma nova meta análise com um número maior de pacientes estudados. Em junho de 2019 foi publicado no JAMA a Meta Análise “Safety and Efficacy of Antithrombotic Strategies in Patients With Atrial Fibrillation undergoing percutaneous Coronary Intervention: A network Meta-Analysis of Randomized Controlled Trials”. Um total de 10026 pacientes de 04 estudos selecionados (WOEST, PIONEER AF-PCI, RE-DUAL PCI e AUGUSTUS) foram avaliados com o objetivo de estudar a segurança e eficácia de diferentes regimes antitrombóticos. O desfecho primário de segurança foi sangramento maior e o desfecho primário de eficácia foi eventos cardiovasculares maiores.
Quando comparado o grupo de pacientes que recebeu antagonista da vitamina K associado a terapia dupla antiplaquetária, os outros grupos tiveram menor risco de sangramento maior. Esses outros grupos foram: 1) Antagonista Vitamina K + inibidor P2Y12 (OR=0,58; IC 95%. 0,31-1,08); 2) Novos anticoagulantes orais (NOAC) + inibidor P2Y12 (OR=0,49; IC 95%, 0,3-0,82); 3) Novos anticoagulantes orais (NOAC) + dupla antiagregação plaquetária (OR=0,7; IC 95%, 0,38-1,23). Importante salientar que só o grupo NOAC + inibidor P2Y12 apresentou significância estatística. Com relação ao risco de eventos cardiovasculares maiores não existiu diferença entre os grupos.
A conclusão da meta-análise é que o regime de NOAC associado a inibidor P2Y12 apresenta menos sangramento comparado com antagonista da vitamina K associado a terapia dupla antiplaquetária. As estratégias que omitem a aspirina causam menos sangramento, incluindo sangramento intracraniano sem diferença nos eventos cardiovasculares quando comparados as estratégias que utilizam aspirina. Esses resultados corroboram para uso de NOAC associado a inibidor de P2Y12 como regime de preferência em pacientes submetidos a intervenção coronária percutânea e que apresentam fibrilação atrial com indicação do uso do anticoagulante. O esquema de antagonista da vitamina K associado a terapia dupla antiplaquetária deve ser evitado.
REFERÊNCIAS:
– Magalhaes LP, Figueiredo MJO, Cintra FD, Saad EB, et al. II Diretrizes Brasileira de Fibrilação Atrial. Arq Bras Cardiol. 2016; 106(4).
– Dewilde WJM, Oirbans T, Verheugt FWA, et al; WOEST study investigators. Use of clopidogrel with or without aspirinin patients taking oral anticoagulante therapy and undergoing percutaneous coronary intervention: na open-label, randomised, controlled trial. Lancet. 2013;381 (9872):1107-1115.
– Cannon CP, Bhatt DL, Oldgren J, et al; RE-DUAL PCI Steering Committee and Investigators. Dual antithrombotic therapy with dabigatran after PCI in atrial fibrillation. N Engl J Med.2017; 377(16):1513-1524.
– Lopes RD, Heizer G, Aronson R, et al; AUGUSTUS Investigators. Antithrombotic therapy after acute coronary syndrome or PCI in atrial fibrillation. N Engl J Med.2019; 380(16):1509-1524.
– Golwala HB, Cannon CP, Steg PG, et al. Safety and efficacy of dual vs. Triple antithrombotic therapy in patients with atrial fibrillation following percutaneous coronary intervention: asystematic review and meta-analysis of randomized clinical trials. Eur Heart J. 2018;39(19):1726-1735ª.
– Gibson CM, Mehran R, Bode C, et al. Prevention of bleeding in patients with atrial fibrillation undergoing PCI. N Engl J Med.2016;375(25): 2423-2434.
– Lopes RD, Hong H, Harskamp RE, et al. Safety and Efficacy of Antithrombotic Strategies in Patients With Atrial Fibrillation Undergoing Percutaneous Coronary Intervention – A Network Meta-analysis of Randomized Controlled Trials. JAMA Cardiol. 2019;